HISTORIOGRAFIA, BANDEIRANTISMO PAULISTA E USOS DO PASSADO
Resumo
A história das bandeiras paulistas é um tema importante em nossa historiografia, apesar de estar sendo hoje muito menos pesquisado, do que o foi no passado. A obra de Antônio Celso Ferreira, além de enfatizar tal fato, preocupa-se com o modo que se deu a construção daquela ‘epopeia bandeirante’, durante o período de 1870 a 1940, no qual letrados e instituições estiveram se articulando, com vistas a compor uma visão da história paulista, que visasse à glorificação do passado no presente. Para demonstrar quais os tipos de invenções históricas que foram produzidas neste período, cujo foco sobre as representações da imaginação histórica lhe aproximaria da interpretação de Stephen Bann que discutiu as invenções da história europeia nos oitocentos, Ferreira reconstituirá de que maneira se formou o pequeno mundo letrado na Província de São Paulo no século XIX, dando ensejo a elaboração de figurações da identidade regional, que se fixariam entre as páginas do Almanaque Literário de São Paulo, fundado, em 1876, por José Maria Lisboa. Após vislumbrar quais letrados contribuiriam com o periódico, de que maneira representavam o passado, como viam a sociedade de sua época, irá verificar de que forma o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) também foi um altar do passado, ao formular uma escrita da história vinculada, de certa forma, aquilo que o Almanaque começaria a celebrar, como o processo de fixação e expansão das bandeiras paulistas pelo território que formariam o Brasil. Fundado em 1894, o Instituto contaria com a participação de diversos letrados, que haviam participado, ou apenas colaborado, com textos para o Almanaque.Feito isto, passaria a identificar como a história das bandeiras e os bandeirantes paulistas seriam apresentados entre os dramas, as tramas e os personagens dos romances paulistas elaborados no período, o que lhe permitiria ainda circunstanciar o papel da Academia Paulista de Letras na apresentação e representação do processo pelo qual se deu a glorificação do passado, do bandeirante e das bandeiras na configuração da escritura da história de São Paulo. Com isso, fará uma incursão pelos velhos heróis e pelas novas vanguardas que se produziram, a partir dos anos de 1920, com a expansão e consolidação do movimento modernista.
O Almanaque Literário de São Paulo circulou durante os anos de 1877 a 1885 (com exceção dos anos de 1882 e 1883), com uma produção variada de matérias, que iam de poemas a trovas populares, notícias, memórias e curiosidades históricas, charadas e ensinamentos morais, perfis biográficos, documentos e estudos históricos, até a figuração de lendas, a apresentação de discursos e orações, bem como cartas e contos históricos. Para ele, a “conclusão de que a história e os historiadores abrigaram-se, à época, sob o grande teto da literatura não significa desconsiderar os esforços, por alguns encetados, para a constituição de um campo próprio do saber, dotado de métodos e regras específicas”, pois, a “busca da verdade, o desapego às paixões e aos preconceitos eram considerados como os princípios básicos que o historiador deveria seguir” (p. 47). Se os artigos e suas temáticas eram diversas, também o seriam a procedência dos colaboradores, vindos de várias localidades, do que se tornará o estado de São Paulo, em fins do XIX. Por certo, sua análise não visaria esmiuçar todos os pormenores dos embates, circunstâncias de elaboração dos textos, nem muito menos a procedência de todos os colaboradores, visto que o próprio documento não forneceria base para esse tipo de análise, em função das próprias lacunas, falhas e imprecisões com que foi composto no período.
O papel exercido pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, não seria menos representativo. Ao averiguar o perfil social dos autores e as temáticas dos textos publicados em sua revista, ou mesmo em livros, ele notaria ainda que no “conjunto de membros do IHGSP, sobressaía um núcleo de origens e laços sociais muito bem-definidos, constituído de indivíduos beneficiários das fortunas já consolidadas na expansão capitalista de São Paulo e que vinham ocupando os mais importantes espaços do poder político” (p. 102), e, além disso, o “capital letrado ostentado por essas famílias era de propriedade basicamente masculina, o que refletia na composição dos sócios do Instituto” (p. 104). No caso da escrita da história de São Paulo, tanto o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, quanto o de São Paulo, seriam herdeiros “da tradição iluminista e imersos em relações e condicionamentos estamentais [...] [e] se autoincumbiram da tarefa de produzir e difundir o conhecimento histórico e científico, concebendo-o como uma marcha linear em direção ao progresso, segundo os princípios de alargamento da civilização branca nos trópicos” (p. 108). De modo semelhante ao que fez com o Almanaque, ao definir os diferentes temas e questões abordadas, o faria com a Revista do HIGSP, para o período de 1895 a 1940, em que se encontrariam grande concentração de artigos (43,8%), mas em que sua tipologia também forneceria subsídios para vislumbrar que, além disso, concentravam-se em genealogias, biografias, elogios fúnebres, na exposição de documentos históricos, conferências, discursos, comemorações e homenagens, atas, relatórios, estatutos e pareceres, catálogos e acervos, assim como na divulgação de crônicas e notícias. Se a área de História perfazia a maior concentração dos enfoques, nem por isso se deixaria de lado a ênfase sobre a Geografia, a Etnografia, o Folclore, a Literatura e as Artes, a História Natural e a Filosofia. Disso resultaria que além de abordarem temas como perfis biográficos (32,7%) e cidades e dioceses (12%), também se preocupariam, dentre outros temas, com o povoamento e a expansão das bandeiras, as populações indígenas, os movimentos sociais e as instituições.
Contudo, como demonstraria, o “enredo histórico paulista, urdido no amplo espaço da imaginação literária, não coube nos limites da escrita da história, espraiando-se, também, na poesia e na prosa de ficção” (p. 173). Ao demonstrar seus paralelos com as sociedades e os periódicos analisados acima, identificando autores, obras, tramas e enredos, deter-se-ia com maior atenção sobre os principais romances do período, cujo foco em dramas e personagens que, direta ou indiretamente, estariam ligados ao processo de consolidação das bandeiras paulistas e de sua expansão para outros lugares, e que, não por acaso, auxiliariam na conformação da ‘epopeia bandeirante’ no imaginário social, e sobre as figurações e representações que se fariam a respeito do passado paulista, daria o norte de sua investigação, nessa etapa de comprovação e exposição dos dados da pesquisa.
Em vista disso, as novas vanguardas que surgiriam, a partir da década de 1920, no interior do movimento modernista, apesar das intensas críticas sobre a produção literária anterior, nem por isso deixariam de enfocar velhos heróis, em suas narrativas sobre o passado paulista. Por essa razão, “foram variados e até conflitantes os esforços para atualizar ou substituir o discurso épico regional, em parte desgastado, de modo a possibilitar a integração dos segmentos sociais emergentes numa mesma identidade histórica” (p. 269), então em rápida mutação. Em alguns enredos produzidos nesse momento, o “caboclo seria [...] o fundamento do bandeirante paulista” (p. 282). Ao rastrear, desse modo, os enredos literários, tanto quanto históricos, produzidos no período, dando ênfase ao perfil dos autores, formato dos romances, configuração dos dramas, elaboração das personagens e das representações e figurações que fariam sobre o passado paulista, nessa “atmosfera de decadência e paradoxais projeções futuristas, de tragédia existencial e desvario, de riso e amargura, de demolição e reconstrução de signos da brasilidade, será celebrado o advento do modernismo, por meio do qual a imaginação literária paulista atualizará, em versão de vanguarda, o discurso da tradição” (p. 304). E, nesse processo, o próprio “movimento modernista passou a ser associado ao mito da bandeira paulista: se os bandeirantes dos séculos XVII e XVIII empenharam-se na expansão territorial, os bandeirantes modernistas assumiam a tarefa da modernização cultural do país, seguindo, contudo, os mesmos objetivos de conquista”, dado que nesta empreitada, “explicitava-se a visão de superioridade regional e as rivalidades com outras partes do país, sobretudo o Rio de Janeiro” (p. 308). Além disso, durante esse período, “não só se modificava o perfil do historiador, a caminho da profissionalização, como também mudavam os paradigmas históricos, sob o efeito dos modelos de explicação econômica e, em parte, como decorrência da expansão ultramarina da moderna historiografia francesa” (p. 336), que iria se somar a ‘história dos costumes’, então praticada nos já velhos Institutos Históricos e Geográficos do país.
Nesse sentido, para Antônio Celso Ferreira o período de 1870 a 1940 representou, na historiografia paulista, o momento de auge na produção de uma história do bandeirantismo, entre os letrados e as instituições, constituindo-se numa época de conformação da “epopeia bandeirante”, na qual:
As letras históricas paulistas, congregando um arco de manifestações discursivas inter-relacionadas, no qual germinaram a historiografia e a literatura, constituíram-se como meios privilegiados de edificação de um saber sobre a terra e a gente de São Paulo, antes do advento de saberes profissionalizados desde os anos de 1940. Elas expressaram a busca de uma identidade regional no espaço amplo e movediço da modernidade, voltando-se simultaneamente para o passado e para o futuro. Na recriação (sempre mítica) do passado, elas buscavam as energias capazes de garantir coesão social e durabilidade cultural para uma sociedade acometida por intensas e rápidas mudanças. Ao se projetarem para o futuro, deixaram entrever os conteúdos utópicos próprios aos regionalismos e nacionalismos (p. 353).
Mas, se “desde 1922 a epopeia paulista ainda teria uma longa sobrevida, até se reduzir a puro simulacro, na atualidade”, pois, viria “1932 e com ele outro encantamento cívico, organizado em torno da simbologia regional, de acordo com a percepção mordaz do mesmo Oswald, um dos poucos intelectuais a não aderir ao chamado patriótico da revolução” (p. 355). Em todos esses aspectos, o texto apresenta de forma primorosa as tensões e transformações desses discursos, que plasmariam visões do passado sobre o presente, representações cujas funções estariam em fornecer subsídios para a glorificação do paulista e de sua história, por meio do engrandecimento da ‘epopeia bandeirante’.
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